ACÓRDÃO N.º 978/2025
PROCESSO N.º 1205-A/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Hermenegildo da Conceição Correia Kagibanga, com os demais sinais de identificação nos autos, inconformado com o Acórdão proferido pela 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 18 de Janeiro de 2024, no âmbito do Processo n.º 2650/19, que julgou improcedente o recurso por si interposto, veio, uma vez mais, ao Tribunal Constitucional, interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
O Recorrente apresenta, em síntese, as seguintes alegações:
1. Que houve já por parte do Tribunal Constitucional uma Decisão de mérito, que julgou procedente o peticionado pelo Requerente, beneficiando, assim, de força obrigatória geral do efeito de caso julgado material.
2. Não faz sentido que, em matéria de natureza jurídico-constitucional, o Tribunal Supremo se sobreponha ao Constitucional. Tal implica uma afronta aos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade, bem como ao princípio do non bis in idem.
3. O Tribunal Supremo, ao não acatar a Decisão do Tribunal Constitucional poderá “confundir” a ideia de vinculação geral com efeitos erga omnes.
4. Concluiu, que foram violados os princípios da segurança jurídica, do procedimento judiciais equitativo, da neutralidade do juiz, da proporcionalidade, do direito ao julgamento justo e conforme, da tutela jurisdicional efectiva, da constitucionalidade e do non bis in idem, previstos nos artigos 6.º, 29.º, 65.º, n.º 5 e n.º 6, 67.º, 72.º, 174.º, e 175.º, todos da CRA, entre outros, o artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, o artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, na medida em que o processo ficou eivado de vícios desde a fase da instrução preparatória.
Termina pedindo que esta Corte revogue, in totum, o Acórdão recorrido.
O processo foi à vista do Ministério Público que promoveu pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos previstos na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, como sendo as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola.
Além disso, foi observado o princípio do prévio esgotamento dos recursos ordinários, legalmente previstos, nos tribunais comuns, conforme o estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que, conjugado com o artigo 53.º da LPC, tem o Tribunal Constitucional competência para decidir deste recurso.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte vencida no Processo n.º 2650/2019, que correu termos na 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo. Por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto verificar se o Acórdão proferido na 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2650/2019, ofendeu princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de Angola.
V. APRECIANDO
Nos presentes autos, verifica-se que o aqui Recorrente, não se conformando com o Acórdão da 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 18 de Janeiro de 2024, em sede do Processo n.º 2650/19, que julgou improcedente o recurso ordinário por si interposto e alterou a Decisão condenatória no âmbito da reforma ordenada pelo Acórdão desta Corte Constitucional, capeado sob o n.º 775/2022, de 22 de Setembro.
Vem, agora, impugnar o referido Acórdão da Câmara Criminal, por, na sua óptica, entender ter sido violado o princípio do caso julgado, assim como o do non bis in idem, o que, por consequência, afrontaria princípios constitucionais, notadamente os da proporcionalidade e do devido processo legal.
a) Sobre a decisão de mérito com força obrigatória que julgou procedente o recurso e a consequente sobreposição do Tribunal Supremo sobre o Tribunal Constitucional
O Recorrente, nas suas alegações, fundamenta que já havia uma decisão do Tribunal Constitucional que julgou procedente o pedido que formulou, com força obrigatória geral e efeito de caso julgado material. Afirma ainda que tal facto, para além de ser inconstitucional, representa uma manifesta sobreposição do Tribunal Supremo ao Tribunal Constitucional.
Assiste-lhe razão?
Veja-se,
O Tribunal Constitucional considerou procedente um anterior recurso extraordinário de inconstitucionalidade, interposto pelo Recorrente sobre o Acórdão proferido na 1.ª Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em sede do Processo n.º 2650/19, reconhecendo a violação dos princípios do contraditório e do julgamento justo e conforme a lei.
No processo-crime em alusão, o recurso ordinário interposto pelo Recorrente, foi ilegalmente julgado deserto por apresentação tardia de alegacões que, na realidade, tinham sido tempestivamente apresentadas, motivo pelo qual, no domínio deste Órgão jurisdicional de controlo, foi dado provimento ao mencionado recurso extraordinário de inconstitucionalidade e se determinou a reforma da Decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), (fls. 557 -567).
Declarada a inconstitucionalidade da anterior Decisão do Tribunal recorrido, o Recorrente foi notificado para apresentar novamente alegações perante àquela instância da jurisdição comum e, em consequência, o recurso ordinário foi decidido com a devida observância do contraditório. Como resultado, o Recorrente foi agora condenado a uma pena de seis anos de prisão maior.
Nestes termos, esta Corte Constitucional entende que o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade versa, no essencial, sobre o procedimento adoptado pelo Tribunal ad quem, para reformar o Aresto ora em sindicância, conforme o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 775/2022, de 22 de Setembro, no âmbito do Processo n.º 951-A/2022.
Ora, em face do Acórdão proferido por essa instância Constitucional, é inevitável, inicialmente, avaliar a viabilidade de o Recorrente interpor novamente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Em seguida, importa examinar se o Tribunal ad quem, ao dar cumprimento à referida Decisão de declaração de inconstitucionalidade, teria a possibilidade de notificar o Recorrente para aprestação de novas alegações e reexaminar o recurso previamente interposto na jurisdição comum.
O recurso extraordinário de inconstitucionalidade, no sistema jurídico angolano, é consagrado como um remédio destinado a reparar ofensas a direitos, liberdades e garantias fundamentais. Constitui um instrumento que visa suprir ou reparar eventuais vícios de inconstitucionalidade nos actos decisórios dos tribunais ordinários e especializados. Por essa razão, qualquer decisão judicial definitiva que ofenda princípios constitucionais ou viole direitos, liberdades e garantias fundamentais deve ser tutelado à luz das disposições combinadas do n.º 2 do artigo 226.º, do artigo 29.º, do n.º 2 do artigo 56.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 181.º, todos da Constituição da República de Angola (em diante CRA).
Ademais, o Tribunal Constitucional, nestes casos, assume a função de guardião dos princípios e valores consagrados na Constituição. Segundo Adlezio Agostinho, há consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de que a inadmissibilidade de impugnação das decisões do Tribunal Constitucional não significam que estas sejam insusceptíveis de reapreciação, mas antes que não podem ser reexaminadas por juízes da jurisdição comum ou por qualquer outro órgão pertencente à esfera do Estado. Eventual recurso de aclaração ou revisão pode, no entanto, ser apresentado unicamente ao próprio Tribunal Constitucional, sendo apreciado pelos mesmos juízes que proferiram a decisão original. O Tribunal Constitucional pode, assim, contradizer a sua própria decisão, seja por via de anulação total, seja admitindo uma questão anteriormente considerada inadmissível e vice-versa. Neste sentido, não se pode propriamente qualificar estas decisões como coisa julgada, nem em sentido formal, nem em sentido material, mas sim como decisões inapeláveis e irrecorríveis no plano jurídico interno (Vide: Manual de Direito Processual Constitucional. Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre as Garantias Constitucionais. Parte Geral & Especial, Lisboa: AAFDUL 2023, p. 624).
Relativamente à possibilidade de o Recorrente socorrer-se de um segundo recurso extraordinário de inconstitucionalidade, apesar da decisão favorável no primeiro recurso, é importante esclarecer que tal possibilidade decorre do facto de a decisão anteriormente proferida por esta Corte, poder suscitar, no âmbito da reforma determinada ao Tribunal recorrido, uma nova decisão. Essa nova decisão, por sua vez, pode justificar uma nova análise de natureza jurídico-constitucional.
Compreende-se, pois, que a decisão judiciária reformada de acordo com os termos previstos no n.º 2 do artigo 47.º e na alínea a) do artigo 49.º da LPC, pode, ainda, implicar vícios de inconstitucionalidade, quer seja por não se enquadrar nos precisos termos da reforma que se impunha do ponto de vista do figurino jurídico-constitucional garantido, quer por surgirem aspectos inéditos susceptíveis de um novo julgamento sobre a matéria constitucional.
No caso em análise, existe uma decisão reformatória do Tribunal ad quem, obedecendo a novos parâmetros e critérios jurídicos que, apesar de tudo, não é despiciendo poder contender com princípios e garantias fundamentais do Recorrente, pelo que, nesta medida, surge em abstrato a possibilidade de interposição de novo recurso extraordinário de inconstitucionalidade, quanto mais não seja, em obediência ao princípio constitucional do direito ao acesso e tutela jurisdicional efectiva e à garantia de um elevado nível de efectividade dos direitos fundamentais.
A propósito, assevera Jorge Reis Novais que “a normatividade da Constituição só estará verdadeiramente assegurada quando para qualquer lesão de um direito fundamental a ordem jurídica preveja um meio jurisdicional capaz de proporcionar o termo da violação e a reparação do titular afectado. Daí que, expressa ou implicitamente consagrada na Constituição, a garantia do acesso aos tribunais para tutela dos direitos fundamentais seja hoje imprescindível a qualquer Estado de Direito” (Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, 2019, Lisboa: AAFDL Editora, p. 180).
Sedimentando o mesmo pensamento, Gomes Canotilho e Vital Moreira, enfatizam que “a revisão de decisões é essencial para protecção dos direitos fundamentais”. Ou seja, permite corrigir erros judiciais e garantir a justiça material (Constituição da República Portuguesa anotada, 2014, 4ª edição revista, Vol. I e II, Coimbra Editora, p. 418).
Quanto ao procedimento adotado pelo Tribunal ad quem, para reformar o Acórdão em sindicância, à luz da decisão anterior de inconstitucionalidade, é relevante, neste contexto, analisar a natureza dos efeitos da decisão que concede provimento ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade, com especial atenção ao âmbito do seu objeto.
De facto, ao reconduzir o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade à análise da constitucionalidade dos actos jurídicos públicos, com base na alegada violação de princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais, a decisão que declara a inconstitucionalidade deve produzir efeitos sobre a decisão judicial impugnada. Assim, torna-se imprescindível determinar a natureza desse efeito, recorrendo, a priori, ao regime geral das invalidades dos actos jurídicos.
Neste âmbito, tanto a nulidade como a anulabilidade estão directamente relacionadas à questão da validade, ao passo que, a eficácia refere-se à produção de efeitos. Assim, a invalidade, no caso em apreço, reporta-se à condição da decisão ordinária impugnada, que, uma vez declarada inconstitucional, deixa de produzir os efeitos que originalmente geraria, podendo até, em algumas situações, anular os efeitos já produzidos (Carlos Ferreira de Almeida, Invalidade, Inexistência e Ineficácia, In Revista Católica Law Review, 2019, Vol. I n.º 2, p. 1-25).
Neste contexto, que a decisão considerada inconstitucional por eventual violação de um princípio ou direito fundamental, é inválida, no sentido de que não pode produzir efeitos na esfera jurídica dos intervenientes processuais, conforme o juízo decisório material.
O Tribunal Constitucional Angolano, desde a sua criação, tem proferido decisões que, em virtude da declaração de inconstitucionalidade da questão suscitada, punham termo ao processo (Acórdão n.º 122/2010, 121/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao), e outras que determinavam a retroceder ou o reenvio do processo ao ponto em que se tenha verificado a inconstitucionalidade no decurso do mesmo (Acórdão n.ºs 482/2018, 595/2019, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Ou seja, o efeito do artigo 47.º LPC tem sido interpretado em duas perspectivas distintas: i. no primeiro caso, o termo ou a reforma de decisão significou a conformação com a subsequente execução da decisão do Tribunal Constitucional; ii. no segundo caso, a reforma significou a anulação dos actos processuais afetados pela inconstitucionalidade que enfermavam a decisão recorrida.
Este entendimento encontra paralelismo na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, na interpretação do artigo 95.º da Lei do Tribunal Constitucional. Segundo reiteradas decisões, “a totalidade da decisão não tem, necessariamente, de ser revogada, desde que a parte inconstitucional possa ser separada e a separação não altere a essência da decisão remanescente. Assim, uma revogação parcial da decisão é permitida e, por vezes, necessária, quando estejam reunidas essas condições. Acrescenta-se, ainda, que a revogação total da decisão apenas se justifica quando a violação dos direitos fundamentais identificada afecte o conteúdo substancial da decisão (Vide: BVerfGE 3, 386 (3881); BVerfGE 44. 353 (383), BVerfGE 96, 44 (55), BVefGE, 92,91 (93), entre outras).
Ainda segundo esta jurisprudência, no momento da remissão e conformação da decisão, o Tribunal recorrido deve decidir novamente, respeitando o efeito vinculativo da decisão constitucional (vide: BVerfG (k) Beschl. V. 12.9.1994, 2 BvR 291/94, NJW 1995, 1477). Como explica Michael Sachs, é inadmissível que o Tribunal destinatário da decisão constitucional reaprecie os fundamentos já analisados pelo BVerfGE (Tribunal Constitucional), adoptando uma posição divergente daquela que foi fixada (Die Bindung des Bundesverfassungsgerichts an seine Entscheidungen. Studien zum öffentlichen Recht und zur Verwaltungslehre; Bd. 18, München, Verlag Franz Vahlen, 1997. S. 377).
Por conseguinte, a decisão de reenviar o processo ou de pôr termo ao mesmo dependerá da faculdade julgadora do Tribunal Constitucional, exercida dentro dos limites de um poder discricionário juridicamente fundado (e não arbitrariamente amplo). Através de uma análise jurídica e constitucional criteriosa, o Tribunal poderá considerar viável o reenvio do processo até ao ponto em que se verificou a inconstitucionalidade ou, alternativamente, decidir pôr termo ao processo sempre que a reconstituição dos factos até esse momento se revele inviável ou infrutífera. Em outras palavras, tal facto só se pode verificar se, do ponto de vista jurídico, for possível assegurar a reparação integral do princípio ou direito violado, garantindo, assim, a efectivação da protecção constitucional.
Na mesma esteira, de acordo com Oliver Klein “o Tribunal Constitucional também pode reconhecer quando já não há margem para uma decisão diferente por razões constitucionais da sua competência. Além disso, muitas vezes pode existir uma necessidade prática correspondente, simplesmente devido à necessária pressa em alcançar a segurança jurídica final” (Oliver Klein in: Ernst Benda/Eckart Klein, Verfassungsprozessrecht,Heidelberg, Müller Verlag Rn., 6151 ff).
No momento da prolacção da decisão, o Tribunal Constitucional deve igualmente determinar os efeitos da mesma, individualizando os sujeitos responsáveis pela sua execução, caso a caso, bem como definir as formas e modalidades concrectas dessa execução, no momento em que proferir a decisão deverá, igualmente, proferir os efeitos da decisão (vide: CDL – INF (2001) 9, Decisions of Constitutional Courts and Equivalent Bodies and Their Execution, Comissione di Venezia 9-10 Março 2001, p. 19).
Estabelecidos os efeitos, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada, sendo por isso, de cumprimento obrigatório. Este entendimento foi recentemente reforçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), que no caso Josep Costa vs. Espanha, em Maio de 2025, julgou improcedente o recurso interposto contra o Estado espanhol, por considerar que a norma que prevê o cumprimento coercivo das decisões do Tribunal Constitucional não viola os princípios fundamentais consagrados na Carta Europeia dos Direitos Humanos. Desta forma, legitimou o uso da força para garantir o cumprimento das decisões.
Efectivamente, decorre do preceituado no n.º 2 do artigo 47.º da LPC que, “se o tribunal der provimento ao recurso, ainda que parcialmente, os autos baixam ao tribunal de onde provieram, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade”.
Tendo em conta o princípio da subsidiariedade do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, bem como a decisão sobre a questão constitucional controvertida, torna-se necessária uma decisão final do litígio que aplique o direito comum, considerando os efeitos instrutórios do Tribunal Constitucional.
Esta necessidade decorre da divisão funcional entre a jurisdição ordinária (ou especializada) e a jurisdição constitucional. Deve também ser tido em consideração que os factos do caso podem ter-se alterado significativamente quando o processo é reapreciado. Tal alteração factual, especialmente quando relevante, não impede, em princípio, a tomada de uma nova decisão, desde que existam fundamentos actualizados que o justifiquem.
Com o provimento do recurso, a decisão impugnada é anulada na parte decisória que correspondeu ao respectivo decaimento. Se a anulação for total, a decisão é inteiramente eliminada. Por conseguinte, os direitos de terceiros eventualmente afectados devem ser considerados, tal como os interesses públicos superiores de natureza geral. Essa ponderação, no entanto, não exclui a possibilidade de impor limites à produção de efeitos jurídicos da decisão. Ainda assim, qualquer restrição à determinação da violação de direitos fundamentais só poderá ser admitida em casos excepcionais, quando os efeitos da decisão continuem a produzir consequências jurídicas relevantes.
Por outro lado, a devolução do processo está efectivamente excluída nos casos em que estejam em causa actos administrativos de natureza sancionatória (ou incriminatória). Nestes casos, a revogação do acto administrativo implica automaticamente o reinício do procedimento na autoridade que originalmente emitiu o acto.
Do ponto de vista da eficácia da tutela jurisdicional e da economia processual, é prudente não entender as consequências jurídicas da remessa como absolutas. Antes, estas devem depender da viabilidade concreta da prolacção de uma nova decisão material, tendo em vista o actual estado do processo.
Diante do quadro jurídico exposto, a justiça constitucional como a refletcida acima, movida por um elevado nível de efectividade dos direitos fundamentais, confere, no nosso ordenamento jurídico, a possibilidade do Tribunal recorrido restabelecer o direito fundamental em razão do qual se formulou o recurso.
Este restabelecimento operado pelo Tribunal recorrido, pode, por vezes, conduzir a prolacção de uma nova decisão judicial reparadora do direito fundamental lesado, circunstância que, na hipótese dos autos, originou a notificação do Recorrente para apresentar novamente alegações recursórias e, assim, viabilizar o reexame do recurso ordinário, desta feita, com o concurso da defesa, em homenagem ao princípio constitucional do contraditório e consequente garantia do direito ao julgamento justo e conforme.
Como notam pertinentemente Joaquim de Sousa Ribeiro, Maria João Antunes e Onofre dos Santos, “a aplicação por remissão do n.º 2 do artigo 47.º da LPC (…) tem por um lado, a função reparadora da violação de direitos fundamentais que assiste ao Tribunal Constitucional por via deste recurso que exige prioridade e celeridade e, por outro lado, o bom cumprimento das decisões de provimento proferidas em recurso extraordinário de inconstitucionalidade, atendendo ao efeito temporizador do envio dos autos para a reforma da decisão (…)” (Direitos Humanos/Direitos Fundamentais: Os Sistemas Internacional e Angolano de Protecção, 2020, Petrony Editora, p.p 223-224).
Reitera-se, por outras palavras, que no recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a Corte Constitucional tem a obrigação de analisar a Sentença recorrida, limitando-se, obviamente, à avaliação da questão de constitucionalidade levantada, pelo que, após o provimento de recurso, deverá remeter o processo para o Tribunal de origem, com o objectivo de que a decisão ali proferida seja reformada.
Em termos similares, defende Jorge Bacelar Gouveia que, “os tribunais inferiores devem reformar ou mandar reformar a decisão no sentido do respeito pela decisão positiva de inconstitucionalidade; Se o Tribunal Constitucional der provimento ao recurso, ainda que só parcialmente, os autos baixam ao tribunal de onde provieram, a fim de que este, conforme for o caso, reforme a decisão ou manda reformar em conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade ou da ilegalidade” (Manual de Direito Constitucional, 2011, vol. II, 3.ª ed., p. 1383).
Nestes termos, a decisão prolactada pelo Tribunal Constitucional, no caso em apreço, não obstante possuir força vinculativa inter partes, com efeito de caso julgado, não contrasta com os princípios e normas constitucionais pois, não impede a possibilidade da prolacção de uma decisão reformuladora sempre que juridicamente tal facto for possível e o Tribunal Constitucional, na fixação dos seus efeitos, assim o entender.
b) Sobre a violação do princípio do caso julgado e do non bis in idem
Nas suas alegações, acresce o Recorrente que a Decisão nestes moldes reformada, fere o princípio do caso julgado por um lado e, por outro, o do non bis in idem, abalando nesta medida os princípios constitucionais da proporcionalidade e do devido processo legal.
Coloca enfim, a questão de determinar se o novo Aresto do Tribunal ad quem, não contende com o valor do caso julgado e, neste encadeamento, com o princípio do non bis in idem, por considerar que o referido Tribunal já decidiu o recurso por si formulado naquela instância de jurisdição comum e que por sinal, foi declarado inconstitucional.
De acordo com Giuseppe Chiovenda “a autoridade do caso julgado ou coisa julgada, consiste na imutabilidade e na vinculação da decisão contida na sentença e constituindo, por opinião comum e por força de uma tradição que remonta ao Direito Romano, um eixo essencial do sistema de protecção jurisdicional dos direitos (Istituzioni di diritto processuale civile, Vol I, Napoli: N. Jovene, 1960, p. 320).
No âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, estabelece o n.º 1 do artigo 47.º da LPC que “a decisão do recurso pelo Tribunal Constitucional faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada e apenas no processo em que foi levantada”.
Deste preceito resulta, com clareza, que o Tribunal recorrido não pode, nem deve, ignorar a decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão de inconstitucionalidade apreciada. A sua obrigação é, tão-somente, sanar a violação dos princípios constitucionais identificados, conformando a sua decisão com os parâmetros fixados pelo Tribunal Constitucional.
A este propósito, firma-se que a precedente decisão proferida por esta Corte, não é uma decisão de mérito comum, conquanto, não faz caso julgado material no processo principal, por esta razão, a lei, como acima se adiantou, permite a reavaliação da decisão julgada inconstitucional com vista a restabelecer o direito fundamental violado. É neste sentido que Adlezio Agostinho observa que “a coisa julgada, dentro da dicotomia direitos -garantias, classifica-se como garantia, na medida em que se destina a tutelar direitos, de conotação instrumental. Sua relevância é imbuída de alto teor axiológico, o que levou o constituinte a elevá-la a categoria constitucional (Op. Cit. p. 623).
Na mesma perspectiva fundamenta Carlos Blanco de Morais, que “dado o provimento ao recurso, os autos baixam ao tribunal a quo a fim de que este “consoante for o caso” reforme ou mande reformar a decisão, em conformidade com o julgamento sobre a questão da constitucionalidade ou da ilegalidade” (Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editore, 2011, p. 822).
O Tribunal recorrido não poderia simplesmente, por força da anterior declaração de inconstitucionalidade, sem mais, ilibar o Recorrente da condenação que sobre si pesa, abstendo-se de reexaminar o recurso ordinário, desta feita, com o concurso das alegações da defesa.
O vício relacionado à omissão das alegacões do Recorrente, no âmbito do recurso interposto, obriga que se lhe fosse proporcionada a oportunidade de apresentar alegações, para que pudessem influenciar a decisão recursiva no plano da defesa material.
De acordo com Ana Prata “se forma caso julgado quando uma decisão judicial adquira força obrigatória por dela não se poder já reclamar nem recorrer por via ordinária” (Dicionário Jurídico, 2008, 2.ª ed., Volume II, p. 79).
Contudo, nos autos em pauta, a decisão do recurso antes prolactada pelo Tribunal ad quem, não logrou alcançar os efeitos devidos, revelando-se ineficaz, em virtude da declaração de inconstitucionalidade, portanto não se aplicando aqui a força do caso julgado.
Em todo o caso, vale recordar que o instituto do caso julgado apresenta duas vertentes (cada uma com os seus respectivos efeitos), nomeadamente, o caso julgado material e o caso julgado formal, conforme disciplinado nos artigos 671.º e 672.º do CPC.
Fortalecendo análoga compreensão, Alberto dos Reis sustenta que “se confrontarmos este ditame com que se lê no artigo 672.º, ficamos logo advertidos de que a decisão transitada em julgado nem sempre tem o mesmo valor ou a mesma eficácia: ao passo que o art.º 671.º fala de força obrigatória dentro do processo e fora dele, o art.º 672.º, só atribui à decisão força obrigatória dentro do processo”.
Acrescenta o referido autor que “estamos, pois, em presença de duas figuras diferentes, de duas realidades perfeitamente distintas. À que o art.º 671.º considera, dá-se o nome de caso julgado material ou substancial; à que o art.º 672.º desenha cabe a designação de caso julgado formal ou processual” (Código de Processo Civil Anotado, 2012, Vol. V, 3.ª ed., p. 156).
Assim, o caso julgado formado pela decisão do Tribunal Constitucional é formal, quanto ao seu alcance no processo principal, justamente porque aquela decisão apenas se encarregou de resolver uma questão processual, que foi a ausência da prática do contraditório, sendo essa uma formalidade essencial para garantia de um julgamento justo e conforme e da tutela jurisdicional efectiva.
Este Tribunal entende que as suas decisões constituem caso julgado formal quanto à questão declarada inconstitucional. Por este motivo, é correcto que sob esta decisão fosse proferida outra do Tribunal ad quem que, sanando a inconstitucionalidade indicada naquela decisão, posteriormente resolveria a questão material do processo, sendo esta a que pode formar o caso julgado material.
O princípio non bis in idem (ou ne bis in idem) é uma expressão latina que traduz a ideia de “não ser julgado duas vezes pelo mesmo facto”. No direito europeu continental esse princípio decorre principalmente do reconhecimento da autoridade da coisa julgada, constituindo um imperativo lógico do Direito.
Entre nós, sob epígrafe “Aplicação da lei criminal”, o n.º 5 do artigo 65.º da CRA, consagra de forma implícita o caso julgado penal e de forma mais precisa o princípio non bis in idem, ao dispor que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto”.
Na linha defendida por Inês Ferreira Leite, “o ponto mais sensível, na relação entre ne bis in idem e caso julgado, reside na exigência de uma sentença definitiva transitada em julgado, pois nos sistemas continentais, a maioria da doutrina transpõe este requisito para o campo do ne bis in idem. Uma vez que o caso julgado assenta na irrevogabilidade da decisão final – e que, por sua vez, a irrevogabilidade depende da exaustão das vias ordinárias de recurso e a exaustão do poder punitivo público. (…) Face às normas constantes do art. 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH (…) só haverá violação do ne bis in idem se, pelo mesmo facto, for dado início a um processo autónomo contra o mesmo arguido” (Breves Apontamentos sobre o ne bis in idem e o Caso Julgado Penal, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Américo Taipa de Carvalho, 2022, p. 323 -325).
Revisitando o que refere Ana Prata, “o núcleo essencial deste princípio compreende a proibição da duplicação dos efeitos jurídicos criminais de um dado facto. Trata-se, verdadeiramente, da proibição da dupla valoração do facto” (Dicionário Jurídico, 2009, 2.ª ed., Vol. II, Almedina, p. 396).
Com feito, o princípio non bis in idem constitui um direito fundamental do indivíduo, na medida em que proíbe a pluralidade de condenações e persecuções estatais decorrentes de uma única conduta e sob os mesmos fundamentos, isto é, impõe restrição ao jus puniendi do Estado, garante o respeito pelo caso julgado e, consequentemente, a manutenção da segurança jurídica.
Todavia, não se evidencia a ofensa desse princípio, pois que, com decisão reformatória posta em crise, o Recorrente, não foi efectivamente julgado mais do que uma vez pela conduta criminal de que foi acusado, porquanto, o precedente recurso decidido pelo Tribunal ad quem, revelou-se ineficaz por não ter observado o princípio do contraditório em razão da desconsideração inconstitucional das alegações da defesa.
Na mesma senda, o Acórdão n.º 306/03 do Tribunal Constitucional Português dispõe que “(…) com efeito, interposto recurso ordinário e ocorrendo anulação do julgamento e reenvio do processo para novo julgamento (…), não estamos perante dois julgamentos pela prática do mesmo crime, já que a anulação de um julgamento implicou o seu desaparecimento da ordem jurídica: o novo julgamento passará a ser o único julgamento do caso (…)” (cfr. Em www.tribunalconstitucional.pt).
A mesma perspectiva foi seguida pela jurisprudência internacional, em especial a do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que, na sua decisão no caso “Nikitin v. Rússia, sublinha que as decisões de anulação do processo que conduzem à realização de um novo julgamento são caracterizadas pela lógica de continuation e distinguem-se da pura terminação com eventual renovação do poder punitivo em momento posterior.
A ratio essendi, não pode casar ao presente caso, a alegada violação do princípio da segurança jurídica, tão pouco do non bis in idem.
Naturalmente, o Aresto ora em análise, para além de pautar-se em conformidade com o princípio do contraditório, curou de apreciar os factos trazidos por força das alegações do Recorrente e os julgou, censurando livremente as provas, porque permitido e, até proferiu uma Decisão que melhorou a condição punitiva do arguido, por este motivo, facilmente, se pode perceber que a mesma é proporcional aos factos que lhe foram imputados. O Tribunal recorrido não deixou de cumprir a decisão prolactada por este Tribunal Constitucional, observando a reforma que se impunha ao caso.
In terminis, tanto a segurança jurídica, a neutralidade do Juiz, a proporcionalidade, quanto a tutela jurisdicional efectiva e o julgamento justo e conforme, constituindo garantias processuais, com dignidade constitucional, inerentes ao Estado Democrático e de Direito, foram, por conseguinte, respeitados pelos intervenientes no processo sub judice; pelo que, não assiste razão ao Recorrente.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR ENTENDER QUE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO OFENDE PRINCÍPIOS, NEM VIOLA DIREITOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 13 de Março de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Josefa Antónia dos Santos Neto
Lucas Manuel João Quilundo
Maria da Conceição de Almeida Sango
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva (Relatora)
Vitorino Domingos Hossi